quinta-feira, 22 de abril de 2010

A ESMERALDA DE FRANÇOIS


“O alvo certeiro da vida é atingir o medo. O alvo da escrita é o leitor. O que gosta de ler para concluir por si mesmo. Sem esperar o gosto alheio.” François Silvestre de Alencar

Esta semana acabei de ler o já inesquecível ‘Esmeralda: Crime no Santuário do Lima’. François Silvestre de Alencar, em sua melhor forma, confirma ser o melhor entre os ficcionistas em atividade por estas bandas. De longe, arrisco dizer. Talvez pela profunda compaixão com que ele banha os personagens que descreve ou (re)inventa.

‘Esmeralda’, além de deliciosa leitura − quase gruda na gente −, é um roteiro de cinema praticamente pronto. O romance contemporâneo mais vital e visualmente buliçoso de que consigo me lembrar*. Patu e a Serra do Lima e a riquíssima fauna humana que habita e flutua por lá agora são agora matéria universal; a terra de Rodrigo Levino pode encomendar o monumento ao autor; mesmo contra a vontade dele, que, avesso a tietagem, se recusa até a fazer as proverbiais noites de lançamento e autógrafos. *(Ando pensando num jeito desse livro chegar às mãos de Karim Aïnuz…)

Falei em “fauna humana que habita e flutua”, porque a maior parte dos protagonistas de ‘Esmeralda’ converge do Ceará, Paraíba e de outras bandas do Rio Grande para o Santuário de N. Sra. dos Impossíveis, na Serra do Lima, onde se concentra a ação. Ao longo da trama, endiabradamente bem urdida, cheia de surpresas e falsas pistas, há um vai-e-vem constante de almas buscantes, uma querência errante que faz pensar num caráter andejo do nordestino, para quem a romaria talvez seja apenas a face ritualizada de uma instabilidade espacial mais profunda, imposta pelas circunstâncias ou, quem sabe, constitutiva mesmo da nossa cultura de povo mestiço e novo; ou de “pré-povo”, como prefere François.

Como um autêntico herdeiro de Chaucer e da tradição do contamento de histórias, comum a todos os grupamentos humanos que nalgum dia imemorial se reuniram em noite escura ao redor de fogo ou fogueira para espantar frio e medo, François lança seu olhar agudo (mas sempre compassivo) e usa a verve narrativa que tem de sobra para dar vida a romeiros, clérigos, ciganos, doidos de vários matizes, ricos, ralé e remediados. A maioria de seus personagens fica carimbada inescapavelmente na nossa cabeça de leitor. E tudo isso sem floreios lingüísticos ou maneirismo oco, e sem forçar a mão numa picaresquice meio previsível que abunda por aí. Rola uma putaria aqui e acolá, mas com medida.

Quer uma leitura prazerosa? E, de quebra, dar uma banda em alguns becos mal-iluminados das paixões humanas? Pois vá atrás do gingado fatal da cigana Esmeralda pelas ladeiras do Santuário do Lima. E atenção nas pitadas de sabedoria que saltam do “caderno de Netarino”, com que François pontua a narrativa. Sou capaz de apostar que não se arrependerá.

Independentemente de ter ou não raízes ou interesse no mundo do Sertão. Que aqui o Sertão é matéria e pretexto; por acaso é o universo cultural e estético que formou o autor, que o conhece a fundo e sabe trazê-lo pra perto de nós. Porque no final das contas, o que desfila na trama de ‘Esmeralda’ é tragicomédia humana: a nossa tragicomédia

Por Chico Moreira Guedes
Revista Quartoze